Autor: Erick Kerbes
Psicanálise
Freud concebeu, antes de mais nada, uma suposta energia de vida, um impulso de vida, chamado libido, que guiaria os empreendimentos de caráter sexual da psique (Eros), isto é, o impulso de vida, direcionado naturalmente ao agarrar, copular, unir, etc. A libido freudiana é energia de caráter exclusivamente sexual, não sendo portanto de uso do impulso de morte, outra concepção freudiana, e diferente de uma energia psíquica de caráter geral. O inconsciente freudiano é depósito de desejos reprimidos, sexuais em sua origem, e, portanto, é abrigo de carga enorme de libido — libido que não pôde se direcionar ao exterior, e, por isso, distorcida e problemática.
Assim, Eros é posto como principal agente e formador de complexos e distúrbios na psicologia freudiana, através da carga reprimida da libido que contém os desejos incompatíveis à consciência e à civilização, pois a consciência e a civilização, para sua progressão e funcionamento harmonioso, precisam que certos desejos sejam reprimidos. Assim, se dá uma divisão entre o “homem moral” e o “homem animal”, a ver, superego e Id, respectivamente. Da necessidade de conciliação entre estes opostos, surge o ego — o eu — como função conciliadora, um servo dos desejos a negociar com as limitações da civilização e da moral. Para os presentes fins, levarei em conta apenas os termos “Eros” e “Superego”, significando estes, respectivamente, “homem animal” e “homem moral”. Assim, segundo Freud, Eros e Superego entram em conflito, conflito este que é necessário à existência da civilização, pois não se pode eliminar totalmente a força erótica, e nem é proveitoso que se o faça, tendo Freud efetuado em seu consultório apenas a sublimação da libido problematicamente direcionada. Se esta castração fosse possível, seríamos, ora, castrados, incapazes de qualquer ação potente e energética, e definharíamos em estagnação eterna. A mera tentativa de castração, no entanto, já produz problemas enormes: a libido, não encontrando expressão adequada no exterior, volta-se ao interior e cria as próprias imagens às quais se dirige: assim se dão as alucinações e outros sintomas patológicos.
Sublimação significa dissolver as direções problemáticas da libido e liberá-la, guiando-a para uma expressão mais adequada. É um redirecionamento de uma energia que, no estado neurótico, só serve à destruição e à má adaptação do indivíduo em questão.
Alfred Adler
Eros, observe, possui caráter coletivo: obedece aos desejos da espécie, já que o próprio impulso sexual é instinto da espécie, que trabalha em função da preservação da espécie. Dito isto, introduzo Adler. Alfred Adler, ao contrário de Freud, dava ao inconsciente não o sentido de um depósito, fruto e remanescência do passado, mas sim o sentido de função, algo a precipitar-nos ao futuro. Segundo Adler, o inconsciente era, na realidade, produtor da vontade de poder do eu, “instinto egoísta”, já que produz instinto, instinto este que dirige-se não a servir à espécie, mas à auto-preservação e ganho próprio de poder, potência.
Nietzsche desenhou este mesmo dado que busca adquirir potência, e precisamente nomeou a chamada “vontade de potência”. Mas Nietzsche não nos vem ao caso, visto que seu contexto e suas conclusões são distintos.
A neurose se define pela dissociação de partes do Self: em Freud, Eros e Superego já não podem regular o fluxo de libido através do ego; em Adler, Consciência e ‘Vontade de Poder’ perdem também em expressão ou limitação— seja o neurótico um tirano dominado pela Vontade de Poder ou um desiludido que a nega.
Sendo assim, a conclusão de Freud acerca da neurose é de que esta se dá pelo reavivamento casual de conteúdos inconscientes, isto é, de um acaso que guia o fluxo de libido em direção oposta à da consciência, causando dissociação. Para resolver a neurose freudiana, tudo que há de ser feito é encontrar as causas de tal dissociação e dissolvê-las na origem, sendo a neurose mera consequência de um evento, sem finalidade. Assim, ocorre a sublimação definida acima e, tendo a libido se soltado de seu objeto neurótico e posta em externação saudável, a neurose deveria se dissolver. A neurose adleriana, no entanto, pauta-se em determinada finalidade: a vontade de potência exacerbada ou reprimida (e que por isso chega, eventualmente, em estado de erupção — pois não se pode tampar um vulcão para sempre) entra em conflito com a consciência, e, para atingir seus fins, provoca sintomas neuróticos, sendo assim a neurose sinônimo de conjunto de artimanhas do inconsciente para atingir maior potência, poder, domínio. A neurose adleriana possui um fim, ainda que alheio à consciência.
Conciliação em Carl Jung
Carl Jung, no entanto, contemporâneo de ambos, sintetiza e concilia ambas as concepções como partes de um mesmo sistema, através de seu “problema dos opostos”. Segundo Jung, a energia psíquica presente na consciência é formada pela tensão de opostos — indivíduo versus coletivo, por exemplo — , e aquilo o que é consciente para um determinado indivíduo pode ser inconsciente em outro. Enquanto um indivíduo é mais dotado de compreensão sobre o princípio do poder, outro indivíduo pode ser mais dotado de compreensão sobre o princípio sexual. Como um opõe-se ao outro, é apenas natural que aquele que vive no mundo do poder seja menos consciente acerca do mundo do sexual. O que habita a consciência e o que habita a inconsciência varia de indivíduo a indivíduo, de acordo com seu “tipo psicológico”. A psicologia junguiana possui uma teoria tipológica de funções cognitivas do Self, bem como de orientações gerais da energia psíquica, a ver, introversão e extroversão, opondo-se elas umas às outras, por estas categorizarem opostos psicológicos. Explicando: Eros é amor. Ora, o oposto lógico de amor é ódio, mas o oposto psicológico de amor é poder. Onde há poder (ou vontade dele) não há amor, e onde há amor, não há poder, já que o poder busca afastamento e domínio, uma visão vertical das coisas, enquanto o amor busca união e conformação, uma visão horizontal das coisas. Assim sendo, o inconsciente adleriano e o inconsciente freudiano são tão somente colocações opostas e igualmente válidas, porquanto descrições de segmentos, de princípios parciais do funcionamento da psique humana.
Freud e Adler discordam em suas teorias pela única razão de serem exemplares de tipos psicológicos diferentes, coisa que os faz focar em diferentes interpretações de um mesmo material psicológico, inconscientemente, tentando reduzir o princípio oposto ao focalizado àquele que é focalizado: enquanto Freud tenta reduzir o poder à pulsão sexual, Adler tenta reduzir a pulsão sexual ao poder. Jung chama este inconsciente, preenchido por Adler com a Vontade de Poder e por Freud com a pulsão sexual, de sombra. A sombra define, então, a função ou orientação inferior da personalidade, seja qual for, pois varia de acordo com o tipo psicológico: no tipo adleriano, Eros é a função dominante, e, consequentemente, o poder é sua parte inferior; sua sombra, aquilo o que é tomado como sendo de maior importância, porquanto um ponto fraco. No tipo freudiano, o oposto ocorre. Assim, a neurose, ainda concebida como dissociação entre sombra e “luz”, pode ser analisada sob a visão freudiana ou adleriana, dependendo do tipo a que o neurótico pertence, além de através de inúmeras outras antinomias que se pode formular. Jung argumenta, portanto, que a neurose possui finalidade, assim como causalidade: ela não acomete o indivíduo para nada, mas para manter equilíbrio psíquico, em decorrência de um desequilíbrio psíquico. A neurose tem caráter compensatório, bem como toda ação espontânea de regulação presente na psique. A neurose contém conteúdos totalmente discordantes daqueles conscientes justamente porque é manifestação da sombra da personalidade, definida exatamente pelas funções contrárias àquelas conscientes. Assim, o trabalho do psicoterapeuta, bem como o esforço do paciente, deve ser em direção à assimilação dos conteúdos inconscientes destacados pela neurose, isto é, à conciliação dos opostos. No tipo do sistema freudiano, cuja sombra é marcada pelo princípio sexual — portanto, em termos junguianos, pela orientação extrovertida (isto é, dirigida a e motivada pelo objeto), o terapeuta vê refletir-se no paciente a expressão de sua própria necessidade: a integração da extroversão, manifesta teoricamente como princípio sexual. No tipo do sistema adleriano, cuja sombra é marcada pelo princípio de poder — portanto, em termos junguianos, pela orientação introvertida (isto é, dirigida a e motivada pelo sujeito), inversamente, o terapeuta vê refletir-se no paciente a expressão de sua própria necessidade: a integração da introversão, manifesta teoricamente como princípio de poder.
2 respostas em “A Parcialidade da Psicanálise”
daora primo
Muito bom.