Como seres humanos, vivemos um grande dilema quanto à existência: por um lado, somos mortais e suscetíveis às tentações e corrupções do mundo. Por outro, somos a única criatura conhecida que pode, de fato e por natureza, enxergar o infinito. Nosso desejo pela eternidade colide fortemente com nossa triste mortalidade, e desta tensão surge o impulso da vida. Se acabará, que valha a pena enquanto dure. Entretanto, nossa aparente dualidade não é mera dualidade. Defendo, ao invés, uma visão tríade do ser humano: somos compostos não só de corpo e espírito, mas de corpo, alma (ou psique) e espírito.
O corpo é simplesmente nossa base fisiológica. É a máquina humana, com seus músculos, tecidos, lobos cerebrais, descargas hormonais, vitaminas, aminoácidos, proteínas e tudo o mais. Quando perturbado, enfrenta doenças de ordem física. O espírito, mais evidentemente contrastado com o corpo, é o próprio centro supra-terreno do ser humano: aquilo o que temos que nos leva a mirar o infinito, buscar propósito, etc. É, nos termos da logoterapia de Viktor Frankl, aquilo o que “busca sentido”; o centro noológico do ser humano. Quando perturbado, enfrenta doenças de ordem noogênica, como argumenta Frankl.
Entre o corpo e o espírito, entretanto, temos mais do que um “terceiro homem”. Entre o corpo e o espírito — enxergados aqui não como duas partes inteiramente diversas e separadas, mas como partes de um ser uno –, temos a psique, também chamada, na terminologia que uso, de alma.[1]não confundir alma com espírito. Autores de diversas tradições não fazem distinção entre alma e espírito, tomando-os como fundamentalmente a mesma coisa, em oposição ao corpo. Como explico … Continue reading A alma é o único campo a que temos acesso direto. Não podemos sentir o corpo diretamente, mas o fazemos através do processamento de estímulos somáticos filtrados por todo o nosso aparelho sensitivo, até chegar à psique, que, por sua vez, novamente filtra e interpreta o que quer que seja sentido, e, aí sim, finalmente, absorvermos a informação dada conscientemente e a ela reagimos a nível consciente. Prova cabal disso são os experimentos há muito efetuados com casos clínicos de histeria: foi com a investigação destes casos que Freud começou a criação da Psicanálise.[2]As teorias de Freud, entretanto, apesar de marcarem um ponto bastante importante na história da psicologia, não são por mim defendidas senão com numerosas e amplas ressalvas. Aparece numa clínica um paciente insensível à dor. Verifica-se seu sistema nervoso e nada há de errado. Médicos correm em todas as direções para tentar entender o que há de errado, mas nada é descoberto. Hipotetiza-se, então, que o problema é psíquico: algo na história do paciente ocasionou uma reação psíquica que inibe a percepção consciente de determinados estímulos. Eis aí a base histórica para a investigação do inconsciente na psicologia experimental, que depois se encaminhou para diversas ramificações. Jung relata o caso de uma paciente que “havia perdido completamente a audição devido a uma afecção histérica, punha-se a cantar frequentemente. Certa vez, quando a cliente entoou uma canção, o médico sentou-se ao piano despercebidamente e a acompanhou em surdina. Na passagem de uma para outra estroge, mudou repentinamente de tom. A paciente, sem se dar conta, prosseguiu, cantando no novo tom. Logo, ela ouve e não ouve.“[3]Psicologia do Inconsciente, por Carl G. Jung, parágrafo 4. Número 7/1 das Obras Completas. Além disso, “Já no tempo de Charcot sabia-se que o sintoma neurótico é ‘psicógeno’, isto é, proveniente da alma. Sabia-se também, graças principalmente aos trabalhos da Escola de Nancy, que qualquer sintoma histérico pode ser provocado pela sugestão. Conheciam-se, igualmente, através das pesquisas de Janet, as condições psicomecânicas dos surtos histéricos, como as anestesias, paresias, paralisias e amnésias.”
Isto é: as sensações podem vir à consciência de uma forma distorcida em função não de um defeito mecânico, mas de um filtro psicológico. Não só isso, como também podem sensações inexistentes, nunca verdadeiramente apreendidas pelos órgãos dos sentidos, chegar à consciência, se fabricados pela psique. Nisso consistem, aliás, as alucinações. Conclui-se, então, que não temos acesso direto à sensação bruta, mas somente à forma filtrada e interpretada desta que chega ao eu. Podemos inibir estímulos sensoriais intensos e criar estímulos sensoriais inexistentes, através, por exemplo, da hipnose, mas, mais comumente na vida corrente, como em oposição ao isolamento do laboratório, através de complexos inconscientes e inspirações de ordem arquetípica. Aquele que está tomado pelo poder devastador do arquétipo, como, digamos, uma mãe que sai em defesa de seu filho, pode ultrapassar em muito a capacidade esperada de seu corpo — e aquele que está tomado por uma noção ou enfermidade incapacitante, gerada na psique, pode ficar muito aquém de seu poder físico real.
Da mesma forma, não temos acesso direto ao espírito. Ele desce a nós, ou venta sobre nós, de alturas que podemos tentar espiar, mas em que não podemos viver diretamente — ou, ainda, quanto trata-se das faculdades espirituais humanas que podemos, de fato, exercer, como é o caso da aspiração a Deus ou da busca por verdades metafísicas, o fazemos através de uma apercepção que passa pelo campo da alma, e ainda através de cognições operadas em primeira instância no campo da alma. Ora, pensar sobre Deus exige o ser humano completo: com nosso espírito, buscamos o infinito em Deus; nosso cérebro faz disparar neurônios e rodarem circuitos de neurotransmissores, e toda a maquinaria se põe em funcionalidade pela execução do ato; e a alma? A alma, afirmo, é a única instância direta desta e de todas as outras experiências e ações. Somente na alma podem formar e traduzir-se aquilo o que é apreendido em primeira instância tanto dos sentidos quanto do que corresponde ao espírito. É a alma, afinal, que transforma tanto o estímulo bruto quanto a sutileza etérea do espírito em imagem, e é com base na imagem que agimos — através, novamente, de uma imaginação. A alma é peça chave para toda a ação humana.
Pois bem: desta forma, ser um melhor ser humano, como um todo, necessariamente incluirá ser um melhor operador da alma. Temos em nosso mundo uma quantidade imensa de pessoas bem-intencionadas, ou extremamente habilidosas ou disciplinadas nos campos do corpo e do espírito, com potencial para serem verdadeiramente extraordinárias — mas que são neutralizadas em seus intentos por causa de uma incapacidade em operar a alma apropriadamente. Dezenas de vezes já vi homens aparentemente admiravelmente virtuosos, com zero tolerância para o mal ou a injustiça, mas que, por desconhecerem a alma, foram incapazes de reconhecer suas próprias falhas morais, atirando em seus próprios pés com seus sensos de justiça e moral especialmente rígidos. Desta forma, em conformidade com as leis da alma, acabaram por, inconscientemente, projetar suas próprias falhas morais nos outros, mantendo a presença de tudo o que é desgostoso em si mesmos escondida de si mesmos. O homem justo, mas cego às sutilezas da alma, acaba por tornar-se irrazoável, pois incapaz de ver a si em suas próprias falhas; acaba, enfim, por ter sua própria justiça sabotada. Vê suas falhas, ao invés de em si mesmo, nos outros. O homem justo e conhecedor da alma, entretanto, é capaz de aplicar sua justiça não somente para corrigir o mundo, mas, em primeiro lugar, para corrigir a si mesmo. Assim, não somente faz do mundo um lugar mais justo, mas também adquire um conhecimento sobre si que o faz ser mais compreensivo para com o outro. Torna-se não somente mais justo, mas também mais misericordioso.
A alma é também primordial em todas as formas de arte. Para ser um grande músico, pintor ou escritor, por exemplo, habilidade é sem dúvida primordial — a memória muscular, o conhecimento de como manipular cada tendão e cada músculo para produzir a melhor cor possível, com a técnica conhecida desejada –, mas tão importante quanto isto é a sensibilidade de coração que é preciso ter para realmente dar um sentido à utilização da técnica, para produzir um quadro final que pode, efetivamente, tocar o coração de quem observar a obra.
Mas como conhecer a alma? Pois estudar psicologia, sem alguma base e aplicação em vivência efetiva, não leva à execução e elevação de toda a alma. Não nos mostra o caminho para a completude e perfeição do uso de cada função da alma, mas exercita, a princípio, somente o intelecto, se transformada em mero método; uma compreensão psicológica completa precisa, evidentemente, abranger todos os escopos da atuação da alma, não somente em seus aspectos testáveis e isoláveis, como o QI ou o efeito de psicoativos, mas também em sua irracionalidade mais absurda. Como é, afinal, que isolaremos o significado de símbolos em sonhos para formar deles sentidos interpretáveis segundo uma tabela de tradução? É amplamente conhecido, aliás, o fato de os símbolos aparecidos nos sonhos serem amplamente impossíveis de serem simplesmente traduzidos — precisam ser interpretados. Não possuem significado pré-definido independente da pessoa do sonhador, mas respondem diretamente ao todo da psique do sonhador.[4]Por isso mesmo, o sonho deve ser interpretado somente em relação com a vida psíquica do sonhador. De nada adianta tentar entender o sonho de alguém sobre quem não se tem informação alguma. Há … Continue reading O que quero dizer é que a psique é um todo holístico, divisável em teoria, mas nunca na prática. Por isso mesmo, a alma não pode ser conhecida somente através dos livros e dos seminários, mas precisa, mais que isso, ser verdadeiramente vivida.
A alma não está nos glossários e nos cursos de psicologia. Não está nas palestras universitárias ou nos guias médicos, mas nos bares e festas, nas crises e nas conquistas, nos pontos altos e baixos da vida de cada um. A alma é verdadeiramente encontrada lá onde o ser humano se coloca em relação com o outro e com seu ambiente, quando defende sua vontade contra o mundo, no tribunal de si mesmo. O moralista e o conformado desencontram-se com suas almas justamente por falhar em manter o posicionamento de sua consciência na fronteira entre o caos e a ordem — falham em mostrarem-se abertos e inquisitivos para com o mundo, dialogando com suas vivências e fazendo delas o máximo possível. Ao contrário, fogem de suas experiências, ou por acreditarem ser incapazes, ou por acreditarem ser bons demais. Mas por quê?
O confronto com a alma põe um peso gigantesco sobre o indivíduo, caso a alma esteja dividida e o eu viva em conflito com seus complexos inconscientes. Não só o indivíduo confrontado com sua alma precisa continuar lidando com fatores pertencentes ao mundo exterior, como aluguel, o que comer no jantar, seu bem-estar físico, poupanças, família e preocupações desta ordem como, além disso, precisa abrir-se a todo um novo mundo. Confronta-se com este desafio e percebe o quão difícil é — pois não somos seres de força e vigor infinitos. Nem anjos nem demônios, nada mais somos do que humanos, sujeitos à lei moral, à lei física e à lei psíquica. Impedidos por esta última, não podemos criar energia psíquica do nada, e, por isto mesmo, manter uma vida externa e uma vida interna em igual nível de adaptação parece impossível. Que fazer quando somos assaltados tanto por cobradores quanto por pesadelos, sintomas nervosos, atos falhos e lapsos na vida consciente de todo tipo, chamando-nos ao caminho das sombras, à caverna do dragão?
Frente a esta dificuldade monstruosa, não nos deve surpreender que muitos de nós desistem: criam mecanismos de defesa, se escudam em desculpas vãs ou numa arrogância ou auto-degradação — pois estes são, nesse caso, fundamentalmente a mesma coisa: medo. E então, que acontece com eles?
Se são verdadeiramente chamados — isto é, se há dentro deles impulso forte o suficiente para a individuação –, ao escudarem-se, medrosos, sofrerão de neurose. O impulso para a individuação força o desenvolvimento da psique, quer queira ou não a consciência, até que o indivíduo seja capaz de reconhecer e assimilar conscientemente os conteúdos forçados a ele através de sonhos ou sintomas psicogênicos. Se os negar e reprimir, agravará sua neurose. Se os confrontar com tudo o que tem, reconquistará o sentido de sua vida, pois é exatamente este que a neurose vem nos comunicar. Dialogando com as camadas mais profundas e obscuras de si mesmo, reencontra-se a luz. Esta aparente escuridão que nos mostram os sintomas neuróticos, aliás, nos levam justamente à nossa completude, ao todo do que verdadeiramente podemos ser. Um bom conhecedor dos contos de fada jamais poderia esquecer que o dragão sempre guarda um tesouro tão belo quanto é o dragão perigoso.
Felizmente, entretanto, a natureza não é tão impiedosa com a maioria dos indivíduos. A maioria das pessoas não é tão derradeiramente confrontada com uma oposição com o inconsciente assim tão árdua a ponto de possivelmente levar à neurose. A maioria dos conflitos travados na alma, em realidade, são travados e resolvidos completa ou parcialmente inconscientemente. Muitos reconhecerão o sentimento de vaga nostalgia de um mundo de fantasia a que parecem pertencer, mas somente muito vagamente. Este sentimento provém destes acontecimentos, e as histórias que mais nos encantam durante a nossa vida são justamente aquelas que tratam de conflitos que vivemos, seja consciente ou inconscientemente. Não descreverei aqui o processo destes conflitos, já que ultrapassa os intuitos deste modesto ensaio.
Meu objetivo, ao invés disto, é convidar o leitor interessado ao estudo da alma. Abro aqui não mais que uma pequena fresta numa pequena janela da mansão que é o estudo da alma. Sei que grande parte dos leitores nada farão e nada pensarão quanto ao tema, tendo este ensaio impacto nulo sobre suas vidas e cosmovisões. Outra parte, como tantas vezes já vi na vida, adicionará a psicologia a uma lista bastante nebulosa de leituras, sem prazo ou pressão reais para serem realizadas. Entretanto, se um só leitor sentir-se verdadeiramente interessado pelo assunto, movido não só intelectualmente como também em seu coração, além de incomodado por ser o tema aqui tão vagamente exposto, então terei acertado meu alvo. A este leitor, digo: seja bem-vindo à psicologia.
Notas
↑1 | não confundir alma com espírito. Autores de diversas tradições não fazem distinção entre alma e espírito, tomando-os como fundamentalmente a mesma coisa, em oposição ao corpo. Como explico neste ensaio, a alma é frequentemente tomada como nada mais do que uma zona cinzenta entre o espírito e o corpo, que, quando assume-se uma dualidade humana, não se sabe a qual dos polos atribuir. Aqui, entretanto, a alma é autônoma, existente sem subordinação fundamental a qualquer um dos polos: espírito e corpo. |
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↑2 | As teorias de Freud, entretanto, apesar de marcarem um ponto bastante importante na história da psicologia, não são por mim defendidas senão com numerosas e amplas ressalvas. |
↑3 | Psicologia do Inconsciente, por Carl G. Jung, parágrafo 4. Número 7/1 das Obras Completas. |
↑4 | Por isso mesmo, o sonho deve ser interpretado somente em relação com a vida psíquica do sonhador. De nada adianta tentar entender o sonho de alguém sobre quem não se tem informação alguma. Há uma só ressalva a se fazer a este ponto: no caso de sonhos que apresentam formas arquetípicas mais gerais, podemos compreender os conteúdos expressos mesmo sem conhecer o sonhador. Não saberemos com certeza, entretanto, o que aquele sonho quer informar ao sonhador. |