Breve Prefácio a Tradução
Richard Rorty (1931-2007) foi um filósofo pragmatista americano que tratou, principalmente, dos temas de linguagem e epistemologia. É conhecido por ser um autor bastante controverso.
No presente ensaio, o autor discute a interpretação de McDowell — filósofo analítico sul-africano, reconhecido pelos seus trabalhos em ética — sobre a obra de Donald Davidson — filósofo americano aluno de Willard Van Quine. O tema central aqui é o da espontaneidade da mente e o papel que ela teria para Davidson no conhecimento humano. Um entendimento pleno disso determinaria se a visão davidsoniana recai, ou não, em um naturalismo epistêmico.
Embora curto, este ensaio não é bem-vindo a todos, requerindo uma boa bagagem de seu leitor. Ademais, deixamos claro que não endossamos as opiniões expostas por Rorty aqui; nosso propósito é apenas dar uma maior acessibilidade àqueles que buscam entender melhor esta discussão.
Fiquem com o texto.
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John McDowell deplora o que ele chama de “naturalismo nu e cru” (bald naturalism). Os bald naturalists acreditam que estados intencionais surgem em organismos que foram programados para responder com proferimentos linguísticos à, entre outras coisas, o impacto do ambiente sobre seus órgãos dos sentidos. Crenças, como Peirce sugere, são apenas hábitos de fazer tais respostas. “Aparições” (contrário ao que McDowell diz nas páginas 140-142) são somente uma certa classe de crenças não-inferenciais.
Fui levado a uma visão totalmente naturalista pelo ataque ao Mito do dado de Sellars e ao dualismo de esquema e conteúdo de Davidson. Fiquei perplexo, portanto, ao descobrir que McDowell sinceramente endossa o primeiro. Pensei que uma vez que alguém segue Sellars distinguindo entre os antecedentes causais de uma crença e seu lugar no espaço lógico das razões, os questionamentos de McDowell sobre a relação entre Razão e Natureza não precisavam ser questionados. Estava igualmente perplexo pelo fato de que McDowell combinou um compromisso a Davidson com uma vontade de tomar a distinção de Kant entre receptividade e espontaneidade – essa paradigmática distinção do esquema-conteúdo – com toda a seriedade. McDowell diz que Davidson mira “acomodar o ponto da fala de Kant sobre espontaneidade”, e que Davidson “não é tentado por um naturalismo nu e cru que optaria por sair dessa área da filosofia completamente, por negar que a espontaneidade do entendimento é sui generis, da forma sugerida pela ligação à ideia de liberdade (freedom)”. (p. 67) Enquanto McDowell o lia, Davidson pensava “que não podemos entender a ideia de espontaneidade naturalisticamente”. (p. 72)
Enquanto eu o lia, Davidson pensa que podemos entender tudo naturalisticamente, e não tem nenhum uso para uma noção como “a espontaneidade do entendimento”. Uma das suas maiores contribuições ao naturalismo sempre me pareceu a doutrina, declarada mais claramente em seu “Mental Events”, que a diferença que Kant viu entre liberdade noumenal e determinação empírica foi simplesmente um contraste entre duas vias de descrever os mesmos eventos: eventos que foram intrinsecamente nem mentais nem físicos. A linha do argumento em “Mental Events” pareceu-me levar à seguinte visão, descaradamente naturalista: a realidade não tem um caráter intrínseco, mas pode ser descrita de qualquer maneira (e.g., como obediente a normas, como servindo propósitos, como totalmente mecânicas) que os usuários de linguagem achem útil. Nenhuma dessas maneiras é mais fiel ao que é descrito do que qualquer outra, nem são aqui problemas filosóficos sobre como essas várias descrições se entrelaçam. Em minha leitura, o anti-essencialismo que Davidson herdou de Quine, desse modo, culmina em um pragmatismo naturalista.
Depois de algumas correspondências com McDowell, percebi que ele valorizou “Mental Events” tanto quanto eu. Mas havia uma diferença interessante. O que ele valorizou mais foram, precisamente, as páginas desse ensaio sobre o qual sempre tive receio: páginas 219-223 (no Essays on Actions and Events de Davidson). Foram nessas páginas, descobriu-se, que ele encontrou evidência para a reivindicação de que Davidson pensa que há algo chamado “espontaneidade”, que não pode ser entendida naturalisticamente.
Sempre achei essas mesmas páginas marcadas pela aceitação da tese de Quine de que a indeterminação da tradução é, de certo modo, distinta da subdeterminação ordinária da teoria. Essa sugestão sempre me pareceu duvidosa, porque parecia repousar em nada mais do que a reivindicação de que um grande abismo se abre entre descrições de eventos, em termos de partículas elementares e descrições intencionais, mas não entre as primeiras descrições e descrições daqueles mesmos eventos em, por exemplo, termos neuro-fisiológicos ou bioquímicos. Nunca consegui ver porque esses dois abismos não foram igualmente amplos, e do mesmo tipo. Então percebi que uma passagem de Davidson que sempre leio como um infeliz retrocesso do naturalismo nu e cru, foi lido por McDowell como um passo à frente – um passo na direção de algo como o próprio “platonismo naturalizado” de McDowell.
A exegese de Davidson parecerá uma maneira estranhamente indireta, bastante escolástica, de comentar sobre McDowell. Mas penso que isso pode ser lucrativo. Pois, McDowell e eu, somos ambos filósofos terapêuticos, ao invés de construtivos. (veja Mind and World, p. 95). Ambos queremos a mesma coisa, dar à filosofia a paz Wittgensteiniana produzindo uma situação na qual “não teremos mais problemas que exijam que a filosofia reúna sujeito e objeto”. Ainda assim, McDowell vê minha forma de pacificação descaradamente naturalista como levado à consequência “intolerável” que “como coisas são … não podem ser independentes da comunidade ratificar o juízo de que coisas são assim e assim” (p. 93), e como provavelmente produzindo “contínuo desconforto filosófico”(p. 142n).
Vejo sua maneira kantiana de abranger nosso fim comum nos conduzindo por um caminho de jardim na entrada para o qual Sellars e Davidson tem colocado avisos – um caminho ao final do qual o desconforto filosófico se tornará tão agudo quanto foi (ou deveria ter sido) para os primeiros leitores da primeira Crítica de Kant. Por outro lado, a atitude de McDowell em relação às minhas próprias propostas de paz é a de Tácitus: Ubi solitudinem faciunt, pacem appelant*. As grandes questões amplas entre nós só podem ser resolvidas por experimentos prolongados, visando medir o grau de desconforto causado por nossas respectivas propostas. Dentro do exíguo espaço disponível, pode ser melhor ficar com algo bastante estreito, nossa admiração compartilhada para “Mental Events” de Davidson.
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Nas páginas citadas acima, Davidson extrai uma distinção entre generalizações homonômicas (homonomic) e heteronômicas (heteronomic). A generalização homonômica é aquela que “pode ser aperfeiçoada adicionando outras cláusulas e condições estabelecidas no mesmo vocabulário geral como a generalização original”, embora uma heteronômica não possa. Generalizações heteronômicas podem “nos dar razões para acreditar que há uma lei precisa em operação, mas uma que pode ser declarada apenas mudando para um vocabulário diferente”. (“Mental Events”, p. 219)
Note que, para descobrir que tipo de generalização temos, precisamos de um critério de similaridade (sameness) e diferença de vocabulário. Precisamos ser capazes de responder a perguntas como: biologia e química compartilham o mesmo vocabulário (físico)? Psicologia e biologia? Essas questões se tornam urgentes quando Davidson passa a dizer que “Dentro das ciências físicas encontramos generalizações homonômicas, generalizações tal que se a evidência as suporta, então temos razão para acreditar que elas podem ser extraídas indefinidamente, baseando-se em conceitos físicos adicionais”.
Essa passagem levanta a questão: quais ciências físicas? A biologia fornece generalizações homonômicas? Promete previsibilidade perfeita como resultado da nitidez? Ou a promessa só existe se a nitidez for feita mudando de um vocabulário biológico para um químico e depois para um microfísico? A última alternativa parece muito mais plausível. Mas, então, generalizações biológicas e declarações gerais ligando o biológico e o químico, seria homonômica somente se tomarmos o vocabulário da biologia-mais-química-mais-microfísica como um grande vocabulário: essa das “ciências físicas”.
Que assim seja. E quanto ao vocabulário da psicologia, o único no qual atribuímos estados intencionais? Isso se junta à biologia, com sua promessa de perfeição através da afiação (sharpening), como parte de um único vocabulário, esse da psicologia-mais-biologia-mais-química-mais-microfísica? Aparentemente não. Pois, Davidson nos diz,
O caráter heteronômico de declarações gerais ligando o mental e o físico volta ao papel central da tradução na descrição de todas as atitudes proposicionais, e para a indeterminância da tradução…. Nem é a irredutibilidade devido simplesmente a possibilidade de muitos esquemas elegíveis iguais, pois isso é compatível com uma escolha arbitrária de um esquema em relação ao qual são feitas atribuições de traços mentais. O ponto é, ao invés disso, que, quando usamos os conceitos de crença, desejo e o resto, devemos estar preparados, como as evidências acumuladas, para ajustar nossa teoria na luz de considerações de irrefutabilidade geral: o ideal constitutivo da racionalidade controla parcialmente cada fase na evolução do que deveria ser uma teoria em evolução… A folga nomológica entre o mental e o físico é essencial enquanto concebermos o homem como um animal racional. (pp. 222-223)
Essa explicação ainda pode deixar nos perguntando se há realmente uma grande diferença entre tentativas de encontrar uma lei estrita escondida sob “Cisnes são, ceteris paribus, monogâmicos”, e tentativas de encontrar escondida abaixo de “Pessoas que acreditam que S implica P. e que S, também acredita, ceteris paribus, que P”. Há mais possibilidade de, por exemplo, encontrar predicados químicos coextensivos com aqueles que designam características relevantes de cisnes e de monogamia, do que encontrar tais predicados designando características relevantes de estados de crença?
Recentemente, em seu “Three Varieties of Knowledge”, Davidson olhou para trás em “Mental Events” e disse que ele estava errado em depender da indeterminação da tradução para o propósito de extrair a linha heteronômica-homonômica. Nesse último paper ele diz que a coisa distintiva sobre a explicação psicológica é o uso de conceitos normativos, conceitos que presumivelmente não são usados ao decidir que encontrou uma instância de confirmação da monogamia dos cisnes. Neste paper Davidson diz que
Se deixássemos cair o aspecto normativo das explicações psicológicas, eles não serviriam mais aos propósitos que servem. Temos tanto interesse nas razões para ações e outros fenômenos psicológicos que estamos dispostos a nos contentar com explicações que não podem ser feitas para se encaixar perfeitamente com as leis da física.
Mas não estamos igualmente dispostos, então, para resolver ao explicar por que o cisne viúvo morre sozinho? Davidson parece admitir que estamos, quando ele continua
Muito do que eu tenho dito sobre o que distingue conceitos mentais dos conceitos de uma física desenvolvida também pode ser dito como distinguindo os conceitos de muitas das ciências especiais tal como a biologia, geologia e meteorologia. Então mesmo se eu estiver certo de que o caráter causal e normativo de conceitos mentais os dividem definitivamente e nomologicamente dos conceitos de uma física desenvolvida, pode parecer que deve haver algo mais básico ou fundacional que conta para essa divisão. Acho que existe.
Mas o “algo a mais” de Davidson não é, tanto quanto eu posso ver, relevante para a disponibilidade de leis estritas, ou de predicados co-extensivos – nem, consequentemente para a disponibilidade ou indisponibilidade de generalizações homonômicas. Pois ele diz que as “fontes finais da diferença entre entender a mente e entendimento do mundo como físico” se encontra no fato de que
Dependemos de nossas interações linguísticas com outros para chegar a um acordo sobre as propriedades de números e os tipos de estruturas na natureza que nos permitem representar essas estruturas em números. Não podemos na mesma via concordar sobre a estrutura de sentenças ou pensamentos que usamos para mapear os pensamentos e significados dos outros, para a tentativa de alcançar tal acordo simplesmente nos envia de volta ao próprio processo de interpretação sobre o qual todos os acordos dependem … Uma comunidade de mentes é a base do conhecimento; ele fornece a medida de todas as coisas. Não faz sentido questionar a adequação desta medida, ou buscar um padrão mais definitivo.
Tudo que Davidson diz nessa passagem parece para mim verdadeiro e importante. Mas ainda assim, concedendo que uma comunidade de mentes fornece a medida de todas as coisas, como isso ajuda a mostrar que há uma lacuna maior entre racionalidade e partículas elementares do que entre monogamia das aves e essas partículas? Por que se mostra que a teleologia pode ser apagável da biologia de um jeito que a normatividade nunca poderia ser apagada da psicologia?
Não posso voltar desta passagem citada pela última vez para aquela citada anteriormente sobre a semelhança de conceitos meteorológicos, geológicos e biológicos aos psicológicos. Concedido que você não pode preencher as cláusulas “ceteris paribus” em generalizações psicológicas, poderia você preenchê-las em generalizações biológicas melhor, livre de normas como elas podem ser? E por que, afinal, importa se podemos ou não? Por que deveríamos deixar intuições sobre que grau de legalidade estrita pode estar disponível em várias áreas de investigação criar problemas filosóficos para nós – problemas sobre, por exemplo, como o pensamento se relaciona com a realidade?
McDowell toma as passagens que citei anteriormente de “Mental Events” como um tipo de Haupttext, que mostra que Davidson acredita que “não podemos entender a ideia de espontaneidade naturalisticamente”. Por que espontaneidade? Porque, tanto quanto posso descobrir, espontaneidade é o que não é governado por leis, e, portanto, pode ser entendida naturalisticamente somente se substituíssemos o naturalismo nu e cru por um “platonismo naturalizado” (Mind and World, p. 95). Espontaneidade é com o que nos deparamos quando vemos que as restrições (constraints) do que Davidson chama “o ideal constitutivo da racionalidade” não são apenas as restrições familiares da explicação holística.
Davidson, suspeito, pode pensar que McDowell explora mais as passagens relevantes de “Mental Events” do que ele pretendia colocar lá. Penso que há algo errado com essas passagens, algo que levou McDowell pelo caminho do jardim que leva ao platonismo naturalizado, algo que não é remediado pelos segundos pensamentos apresentados em “Three Varieties of Knowledge”.
Meu palpite é que o que Davidson pensa de como as restrições irredutivelmente distintas que a ideia de racionalidade compartilhada impõe à explicação psicológica são simplesmente as restrições familiares da explicação holística – e, portanto, não muito diferente das restrições holísticas sobre nossas explicações biológicas. Deveria pensar que o que Davidson chama “irredutibilidade definicional e nomológica” é apenas mais um exemplo do fato banal, wittgensteiniano, filosoficamente pacificador, de que duas maneiras de descrever qualquer coisa nunca podem fazer exatamente as mesmas tarefas.Por causa desse palpite de que o holismo envolvido na explicação psicológica não é muito diferente daquele envolvido na explicação biológica, estou inclinado a pensar que essa tentação de fazer um grande negócio com a distinção física-psicológica é uma ressaca de uma época anterior, pré-darwiniana na história da filosofia – a época de Kant. Enquanto leio a história da filosofia, Brentano destilou a essência da grandiosa distinção esquema-conteúdo de Kant em seu critério do físico, e Quine e Davidson engoliu a resultante pílula envenenada. Os perigos de fazer isso me parecem claros quando observamos o que McDowell faz com Davidson – a saber, a fixação na passagem de “Mental Events” sobre discussão como uma maneira de voltar ao “insight que Kant estraga ao colocar no quadro de sua fala do supra-sensível”, a saber, que o “pensamento empírico é racionalmente responsável (answerable) à realidade que pretende ser sobre” (McDowell, p. 82).
Acho que, a menos que adotássemos um naturalismo que seja, possivelmente, ainda mais nu e cru do que o de Davidson, continuamos pensando que Kant teve algum insight ruim, e que Brentano estava certo que a distinção intencional e não-intencional tem um tipo de irredutibilidade especial, extraordinariamente interessante, filosoficamente significativa. Permaneceremos maravilhados com a distinção descritivo-normativo, ao invés de dizer que a distinção, como as distinções célula-cisne e célula-molécula, é, na verdade, definitivamente e nomológicamente irredutível, mas não deixa de ser filosoficamente estéril.
Notas
[1] Sou grato a Bjorn Ramberg por valiosos comentários sobre a versão anterior deste paper.
* “Onde fazem a solidão, dizem que estabelecem a paz”