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Responsabilidade

Como faço toda vez que me encontro desorganizado entre meus pensamentos, ao pensar sobre a responsabilidade, me questionei: o que é a responsabilidade?

A definição mais imediata em que consigo pensar é: responsabilidade é a capacidade de sacrificar o presente pelo futuro em determinado âmbito e segundo determinados compromissos aceitos como tais. Porque não podemos priorizar todas as coisas ao mesmo tempo e, da mesma forma, não podemos nos cobrar por todas as coisas que acontecem no mundo: responsabilidade é um transitivo, i.e., é sempre responsabilidade para com algo, e nunca responsabilidade por si mesma. Ser um homem responsável não significa deter alguma qualidade mágica de influência indefinível, mas ter uma seleção de coisas cuja continuidade mantém através de suas decisões e esforços.

Assim, surge uma questão: se a responsabilidade pode ser considerada um critério para algo maior ou se ela é um bem em si mesma.

Se ela for um critério para algo maior, então ela é mero meio, uma ferramenta para a medição do empenho dedicado e da importância atribuída ao fim. Se for um fim em si mesma, não pode servir a alguma outra coisa: afinal, já é o próprio bem que se busca. Portanto, por ser transitiva, a responsabilidade deve ser um critério para julgar a necessidade de esforço por um bem e a priorização deste nas decisões tomadas pelo indivíduo. Aqui se faz necessária uma distinção: há a responsabilidade que é dada, i.e., a responsabilidade esperada, como dizer que “sou responsável por minhas amizades”, e a responsabilidade enquanto ação, enquanto concluída ou funcional, que diz que “sou responsável para com os meus amigos”. É do sucesso na maioria das áreas da responsabilidade esperada que se extrai a afirmação da responsabilidade funcional geral: “sou um homem responsável”.

Diversos conflitos podem existir quando a responsabilidade é coletivamente considerada. Quando entre duas pessoas há um choque de suas hierarquias de prioridades, um tende a acusar o outro de irresponsável, ou então um cede ao outro. Se, na minha lista de prioridades ou de relevância atribuída, o café está acima do chá, enquanto na lista de Adamska o chá está acima do café, não necessariamente há conflito, apenas discordância. Se, entretanto, temos que ativamente escolher entre dois eventos e minha prioridade é oposta à de Adamska, então há conflito, na medida em que a ação só pode concretizar uma das duas priorizações. Não há, entretanto, irresponsabilidade, enquanto a priorização for uma questão subjetiva, referente a gostos pessoais não universalizáveis. Nesse caso, Adamska pode ceder à minha vontade ou eu posso ceder à dele, ou então ainda podemos encontrar o consenso em alguma outra solução. Fato é que, no dia-a-dia, a maioria destes conflitos de prioridades na decisão tendem a ser simples e resolvíveis através do diálogo ou do mantimento de certa diplomacia em estabelecer um equilíbrio de vezes em que um cede ao outro e o outro cede ao um. Cedendo e tendo concessões feitas a si, se estabelece uma relação de abertura, por mais pequenas que as concessões sejam: mostra-se que se está aberto à influência ao outro, e, implicitamente, é demonstrada também uma configuração da hierarquia de prioridades em que a relação com o outro está acima da satisfação daquilo de que se priva quando se faz a concessão. A própria existência do conflito culmina na resolução do conflito pela natureza da relação daqueles que entram em conflito, e o conflito se mostra como possível meio para a reafirmação do caráter da relação. Isto poderia explicar o fato de as mulheres, principalmente quando inseguras, buscarem ativamente o conflito com seus parceiros. Há aí uma tentativa de reafirmar a relação existente e de se assegurar do amor que seu parceiro sente por ela.

Da mesma forma, então, que consideramos um amigo leal quando este é capaz de demonstrar sua disposição em ter certas de suas prioridades frustradas na decisão pelo mantimento da relação conosco, consideramos também uma pessoa educada quando esta é capaz de demonstrar uma disposição em ter certas de suas prioridades frustradas na decisão pelo apaziguamento do ambiente, ou para que os outros não tenham suas necessidades frustradas. Este é o conflito de prioridades de resultado positivo.

Nesta relação, pressupõe-se que há um equilíbrio entre a prioridade frustrada e a satisfação de outra prioridade, e entre as prioridades frustradas de ambos. Se, em um relacionamento, só uma das partes faz concessões, então ou o lado que faz concessões é submisso ao outro, ou o outro é um recém-nascido – o que nos leva à questão das relações desiguais. Há as relações desiguais corretas e as distorcidas. Entre as corretas, temos, como exemplo, a relação de mãe e filho: pela importância que dá ao seu filho, a mãe faz por ele inúmeros sacrifícios, e isto é assim pela própria natureza da maternidade. A relação entre mãe e filho, ao menos no começo da vida do filho, pressupõe desigualdade.

Entretanto, outras relações não pressupõem desigualdade, e não é da natureza delas que haja desigualdade. Entre amigos, por exemplo, deve haver, a longo prazo, igualdade e equilíbrio de concessões. Este é um pressuposto da amizade; se não há igualdade entre as concessões, a relação deve ser de uma concepção ou prática distorcida da amizade, ou então de outro algo que não amizade. Este é um conhecimento tácito que adquirimos naturalmente e, quando sua manutenção é adequada, sentimos uma sintonia para com o outro.

Quando, no entanto, generalizamos determinada hierarquia de valores – corretamente, quando se reconhece determinado fator como mais importante do que outro por necessidade, ou incorretamente, na falha neste julgamento – e o outro não age em conformidade com ela, dizemos que suas prioridades estão distorcidas, isto é, que o indivíduo está sendo irresponsável. Quando tomamos como pressuposto que a sobrevivência é mais importante do que a emoção de um momento animado e temos uma situação em que um indivíduo coloca sua sobrevivência em risco em troca de um momento animado – quando, por exemplo, um jovem dirige bêbado em alta velocidade –, então julgamos o outro como irresponsável. Neste caso, corretamente.

Há, entretanto, casos em que um indivíduo é incorretamente julgado como irresponsável. Isto se dá quando o acusador afirma ter aquele agido em discordância com a hierarquia correta de valores, mas esta hierarquia julgada objetiva e supostamente necessariamente correta é, na verdade, a tentativa de generalização de uma hierarquia própria e de afirmações de caráter subjetivo sobre a qual se diz normativamente que o indivíduo deveria tomá-la por base em suas decisões, ou então a tentativa de imposição de um julgamento incorreto sobre uma questão que é, de fato, objetiva. Também há erro quando se considera um fator objetivo como subjetivo, mas neste caso não há acusação de irresponsabilidade por parte daquele que se considera. Portanto, há acusações legítimas e ilegítimas de irresponsabilidade, coisa que se mede pelo conteúdo cuidadosamente analizado da afirmação, e não pela atitude ou formulação da acusação. Um pai pode partir de sua posição de autoridade paternal legítima e incorretamente acusar seu filho de irresponsabilidade, de maneira semelhante à que um silogismo pode ser válido, mas falso.

Se, por exemplo, um pai prefere sapatos pretos aos marrons e, na situação de uma ida à missa, vê que seu filho pretende ir à missa de sapatos marrons e diz a ele que é um irresponsável por ir à missa com os sapatos marrons e não com os pretos, dado que está supostamente priorizando seu próprio capricho em detrimento do respeito ao ambiente que vai, que, neste caso, supomos que deve ser a prioridade, está partindo de uma posição legítima de autoridade para ensinar seu filho, mas parte do pressuposto errôneo de que a vestimenta correta é o sapato preto e não o marrom, pressuposto este que é uma generalização apressada de uma experiência ou preferência pessoal. Da mesma forma, um pai que, em sua luta por independência financeira, encontrou seu caminho na área de exatas, não faz uma acusação verdadeira ao afirmar que seu filho é um irresponsável por escolher a área de humanas, supostamente priorizando seu gosto por determinada área do conhecimento em detrimento de seu sustento a longo prazo. Voltando ao exemplo dos sapatos: poderia haver na escolha do filho entre os dois pares de sapatos uma questão de responsabilidade porque, caso o pai estivesse correto, a preferência do filho expressa por sua escolha dos sapatos marrons poderia ser, numa atitude responsável, sacrificada pelo serviço ao bem entendido da conformidade social, da adequação ao ambiente de destino. Como, no entanto, este não é o caso, o filho não está errado por favorecer sua própria preferência e servir a seus interesses ao escolher o sapato que mais lhe agrada. O pai, por sua vez, ao impôr sua preferência subjetiva não como solicitação, mas como ordem baseada num pressuposto errôneo, este sim, age inadequadamente.

Podemos adicionar outra camada a este exemplo: se o filho tentar explicar ao pai que há subjetividade neste caso e esta é uma situação de preferência, estará agindo decentemente. Se, no entanto, o pai reagir com violência sem sequer considerar a posição do filho, estará priorizando seu capricho ao valor de ser gentil com seu filho. Se reagir com parcimônia e entrar em diálogo com seu filho, expondo sua preferência gentilmente e fazendo um pedido ao seu filho que, reconhecidamente, não precisa ser atendido, a batata quente passa para o filho: priorizará ele seu capricho ou o capricho do outro? Neste ponto, ultrapassamos o que pode ser alcançado por um experimento mental geral, já que inúmeros fatores contextuais e dependentes da relação pessoal do pai e do filho em questão entram em jogo.

Assim, vimos que podemos usar a responsabilidade ou a atribuição de responsabilidade como critério para entender a priorização de valores levada a cabo pelo indivíduo que julga, bem como podemos entrever em seu julgamento do outro o seu próprio entendimento de o que é subjetivo e o que é objetivo no que se refere ao estabelecimento de prioridades, e quão amadurecido é o seu uso desses valores: se pretender solapar a estrutura do outro sem uma reflexão sobre a possibilidade de subjetividade, agirá como uma criança, seja pai, filho ou governante. Afinal, o que é o tirano senão aquele que impõe seus caprichos através da ameaça ou do uso de violência?

Se, por outro lado, um indivíduo considerar a possível subjetividade no caso, tolerá-la na decisão em grupo e, quando o caso for de objetividade, encaixar a imposição de valores objetivos com a preservação da relação daquele a que se refere o seu discurso, ao menos em intenção, terá se provado bastante amadurecido e socialmente hábil.

Com isso, podemos falar do sistema democrático. A democracia elege pretensos representantes que, ao serem munidos da aprovação de pouco mais de metade da população votante, fazem leis que têm impacto na vida de todos. Na criação de leis na democracia, então, não há um critério de objetividade das afirmações feitas na criação de leis, que se torna, então, – considerando-se um positivismo e um certo prescritivismo na lei, i.e., a lei não é natural e sim produzida – subjetiva. Na medida em que uma regra é objetiva quanto à sua moralidade, não pode ser criada, somente aplicada. Se é objetivo e correto que a preservação de uma vida vale mais do que a aquisição de um bem material e alguém desrespeita isso, a imposição de uma punição nada mais é do que a aplicação do próprio sistema distorcido de avaliação do infrator a ele mesmo – aquele que rouba está sujeito a ser roubado, caso contrário cairá em contradição. Assim, uma regra artificialmente criada há de ser subjetiva, e, na medida em que se torna – segundo minha concepção, incorretamente – “lei”, ocorre um tornar objetiva uma questão que é na realidade subjetiva, já que a própria concepção de lei carrega consigo a necessidade de uma punição àqueles que a infringem. A punição, por mais que em primeira instância possa parecer ser apenas uma multa, em última análise é ameaça ou uso de violência: ao descumprir uma ordem de pagamento de multa, você será preso, e, se resistir novamente, poderá ser agredido ou até mesmo morto. Sendo assim, a votação democrática é uma tentativa de imposição de seus próprios caprichos a todas as outras pessoas por meio da ameaça de violência. Como a imposição infantil de um capricho sobre as outras pessoas, a democracia é uma imposição de um capricho da maioria sobre o processo de decisão e ação da minoria, mesmo que esta minoria consista de 49% das pessoas. Mesmo que a proporção fosse de 99% pra 1%, no entanto, esta imposição seria algo objetivamente errado, já que se trata do uso injustificado de violência pela imposição de um capricho.

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