Dentre os vários conceitos da filosofia, poucos são mais clássicos que os de ato e potência, estes que tiveram sua origem na filosofia do grego Aristóteles e, até os dias de hoje, são grandemente úteis para as mais variadas investigações, sobretudo na Ontologia.
Muito bem, começando pela explanação geral, temos que o ato se define como eficácia, como perfeição, é ele o coração da atividade, pois nada atua senão enquanto é em ato; a potência, ao contrário, é a aptidão do ato à determinações, seja para recebê-las (potência passiva), ou entregá-las (potência ativa). De imediato, percebemos que a realidade da potência funda-se no ato, funda-se na atualidade, pois não poderia o nada estar apto à determinação alguma, sendo assim, enquanto que o ato é por si mesmo, a potência afirma-se unicamente mediante o ato.
Para um exemplo mais palpável, podemos imaginar um bloco de madeira que, enquanto tal, possui uma real possibilidade de se tornar uma cadeira, esta que pode ou não atualizar-se, pode ou não transitar desse estado potencial para um estado onde é atualmente uma cadeira.
O ato, como antes delineamos, não precisa de outro para afirmar-se, não se funda em outro, é ele, como o ser, um afirmar de si próprio, afirmar este que percebemos ante os entes passageiros que se nos apresentam no devir. Sendo assim, é ele o sustentáculo de toda a realidade, o fundamento permanente no qual se dá o transeunte; em sua razão própria, não possui ele outra coisa que a pura eficácia e perfeição.
A potência[1], por outro lado, implica sempre a ausência de atualidade, a ausência de perfeições, pois o ente não possui meramente potência para determinada realidade senão enquanto carece dela atualmente. Todo ente que possui mescla de potencialidade é, assim, imperfeito em algo sentido, uma vez que é a potência o que limita o ato, o deixando em um estado de imperfeição, estado este que é nos evidente em meio às tristezas e maldades que nos permeiam.
Após essa breve explanação acerca dos termos, convém-nos justificá-los, para que não se dê como gratuita a aceitação de tais realidades como independentes de nosso intelecto. Pois bem, observando os fatos, sejam externos ou internos a nós, notamos que há a presença da sucessão, pois eles, não sendo permanentes, sucedem-se uns aos outros, originando, desta maneira, o devir. Ante tal aparente evidência, podemos levantar o questionamento de como seria esta realidade possível, como seria possível o suceder-se, o que nos leva à famigerada problemática da mudança. Assim, os antigos, refletindo sobre o tema, propuseram teses com o fim de elucidar a questão, podendo essas apresentarem-se da seguinte maneira:
- Os que negam a realidade do devir. Estes afirmam unicamente a homogeneidade e permanência, o devir, desta maneira, nada mais é que uma mera ilusão de nossos sentidos. Argumentam que a mudança, sendo uma passagem do não-ser para o ser, é impossível, dado que o não-ser não é de maneira alguma e, assim, nada pode provir dele.
- Os que negam a permanência. Estes, ao contrário, afirmam unicamente a heterogeneidade e o devir, de modo que a única coisa que permaneça não seja outra coisa senão eles. Dizem, então, que ninguém entra no mesmo rio duas vezes, pois, na segunda vez, tanto a pessoa como o rio, sob esse constante fluir, teriam sido absolutamente modificados.[2]
Pois bem, sob este contexto, surge a solução sintética do ato e da potência, que considera tanto o devir, a mutabilidade, como o permanente, o que perdura. Desta maneira, o que se altera, o faz mediante uma possibilidade que realmente se encontra no ato, de modo que a passagem do não-ser ao ser, imprescindível à mudança, não se dê a partir de um não-ser absoluto, que negaria e destruiria a possibilidade de ser, e tampouco a partir do ente determinado, pois já seria, mas sim a partir de tal indeterminação que se dá nos entes, esta que consiste em um termo médio entre o puro não-ser e o ser já determinado. Uma mesa, por exemplo, não provém da mesa em ato, que já seria mesa, mas sim da indeterminação real que se encontra na madeira. O ato, portanto, pode ser tido como a causa da imutabilidade, ao passo que a potência, correspondendo ao indeterminado que nos referimos anteriormente, causa da mutabilidade.
Resolvendo, desta forma, a Aporia do Devir, essa divisão da realidade alcança tanto o positivo afirmado por nosso intelecto, que diz que o ser é e o não ser não é, como o positivo afirmado por nossos sentidos, que testemunham o múltiplo e o mutável. Logo, o ato e a potência provam-se teses filosóficas muito bem fundamentadas, nos salvando de fechar os olhos para um ou outro aspecto fundamental do nexo do acontecer cósmico.
Dando continuidade, podemos agora voltar-nos ao real para investigar a aplicação destes princípios, atitude que se mostra deveras proveitosa, como veremos. Assim, servindo eles para que expliquemos a realidade, nada mais justo que elucidarmos como se dão na faticidade do mundo sensível. O ente sensível, sujeito às mais variadas mutações, exige um princípio potencial não atualizado, de modo que a mudança, em suma, consista no trânsito da potência ao ato; portanto, segue-se que não há ente sensível que se suceda como pura atualidade, mas sim unicamente como mesclado com a potência, sendo, desta maneira, um composto entre atividade e passividade, entre ser e não-ser[3]. Pois bem, possuindo eles necessariamente composição, suas partes encontram-se em potência para o todo e, não podendo simultaneamente encontrarem-se em ato em relação ao mesmo aspecto, não podem se atualizar de modo independente. Vê-se, assim, que o ente sensível é dependente, é por outro (ab alio), e não por si mesmo, tal como todo ente composto enquanto composto.
Com relação aos entes sensíveis, podemos segmentá-los, segundo os princípios até aqui explanados, em matéria e forma, onde a matéria representa o aspecto determinável, passivo, a potência; e a forma o determinante, ativo, o ato. Deste modo, quando observamos um ente material qualquer, notamos que, além da matéria que este possui, é ele isto ou aquilo, é, por exemplo, cadeira e não mesa, e é a forma que, neste sentido, determina a matéria, enquanto que o princípio material também determina a forma à medida que a restringe na singularidade do existir cronotópico. São a matéria e a forma, deste modo, contrários que não se anulam, mas se completam na harmonia resultante da interação mútua entre eles, formando a unidade de tudo que se gera.
Ainda sobre a matéria, um curioso aspecto se mostra quando investigamos sua natureza[4] enquanto tal, pois, não possuindo determinação alguma, é absolutamente pura, virgem, capaz de dar à luz sem nunca sair deste estado de pureza, o que, exposto sob tais termos, revela-nos claras possibilidades de conexões simbólicas com âmbitos que ultrapassam o que a ontologia apenas pode alcançar; contudo, por fugir do presente tema, deixemos tal ponto para outra ocasião.
Com o que foi apresentado, é evidente o quão frutífera essa grande tese filosófica é, tendo ela contribuições em diversos campos de nosso saber, pode certamente auxiliar-nos nas maiores perguntas que circularam e circulam por toda a humanidade.
NOTAS
[1] Nos referimos aqui à potência passiva.
[2] Observando essas teses opostas, notamos que, em ambos os lados, há unilateralidades, isto é, unicamente um aspecto é atualizado em detrimento de outro: na primeira, a atualização do racional sobre o sensível, na segundo, a atualização do sensível sobre o racional.
[3] O não-ser, no sentido aqui adotado, significa a ausência de alguma realidade positiva, de alguma perfeição, e não o não-ser absoluto.
[4] Referimo-nos aqui ao que foi chamado matéria prima pelos escolásticos.