Prefácio
Traduzido por Gabriel Marculino Ferreira, acesse a palestra original aqui [Título original: On Man, Nature, Truth and Justice (2015)”. Palestra originalmente proferida no Mises Institute no ano de 2015.
Hans-Hermann Hoppe
É possível descrever e explicar o homem em termos naturalistas, da mesma maneira como descrevemos e explicamos pedras, plantas e animais: na linguagem da física, química, biologia, genética, neurologia, etc.
Mas uma descrição puramente naturalista do homem, enquanto inteiramente legítima, e mesmo se verdadeira, deve falhar em capturar a essência do homem: o que faz o homem único e o distingue de todas as outras coisas: de pedras, plantas e animais.
Que esse é o caso pode ser facilmente reconhecimento em perguntar a si mesmo o que é que alguém está fazendo ao debater a questão em mãos – a natureza do homem – ou qualquer outra questão para esse assunto. A resposta: Nós falamos um com o outro em palavras e sentenças significativas – nós apresentamos argumentos – e fazemos isso com o propósito de sucesso argumentativo, de alcançar um acordo a respeito da validade de um argumento ou a verdade de alguma proposição. Ainda assim é obviamente impossível dar uma descrição naturalista dessa parte inegável da natureza humana: de palavras significativas, sentenças e argumentos, de intenção e propósito, de verdade ou falsidade, e de sucesso e fracasso. Não há nada proposital, significativo, verdadeiro, falso, bem-sucedido ou mal-sucedido na natureza. Natureza e as leis da natureza são o que elas são e trabalham da maneira que elas são, imutáveis e infalíveis. Ainda assim proposições ou sentenças humanas são intencionais, significativas, e verdadeiras ou falsas, i.e, todo significado e todas as verdades, no mais fundamental sentido, significados e verdades para o homem, ao invés de significado e verdade-em-si (an sich).
Portanto, todo cientista natural – seja biologista, fisiologista, químico, geneticista ou neurologista – que reivindica que o homem pode ser reduzido a nada mais que a natureza se torna enredado em uma contradição.
De um lado, o “homem” sobre o qual este cientista fala e escreve sobre: o homem enquanto natureza (que ele reivindica ser o único ‘homem” que existe), não tem propósito e significado e nada sobre seu funcionamento interno é verdadeiro ou falso, bem-sucedido ou falso. Tudo funciona da maneira que funciona, em concordância com leis causais imutáveis e infalíveis. Até mesmo a vida e a morte não tem significado. A morte e a disfunção corporal não falsificam leis causais. Nem a vida confirma essas leis. As mesmas leis valem igualmente para a vida e a morte. Vida e morte não são um “sucesso” ou “fracasso”, na medida em que se interessa o homem-enquanto-natureza. Eles simplesmente são: eventos (valorativos) moralmente “neutros”. E ainda assim: Do outro lado, ele, o próprio cientista, que obviamente considera a si-mesmo como um membro da classe de “homem”, segue um propósito conduzindo sua pesquisa sobre o homem enquanto natureza. Ele conduz operações propositais e deve empregar sentenças significativas para descrever os resultados de sua pesquisa a respeito de materiais naturais e processos “em-si” sem significado. Ele reivindica esses resultados sendo verdadeiros ao invés de falsos. E dado seu propósito, ele considera sua pesquisa um sucesso ou um fracasso. E para ele, em contraste ao homem enquanto natureza, morte ou disfunções corporais tem significado e são, de fato, fracassos e disfunções. Ainda assim elas têm significado e são fracassos ou disfunções apenas na medida em que elas são relacionadas a um propósito humano: o propósito de querer preservar a vida e a saúde (como alguma coisa “boa”) e para prevenir doenças e a morte (como alguma coisa “ruim”).
Em vez de uma descrição necessariamente “naturalista” insuficiente e incompleta, então, quero apresentar que alguém pode chamar uma descrição cultural (ística) do homem, que captura o que a descrição naturalista deixa de fora e, desse modo, elucida o que distingue o homem de qualquer outra coisa.
E já ganhamos um ponto de partida não-naturalista do qual devemos começar esse empreendimento: o a priori da argumentação.
O homem inegavelmente pode argumentar. Não é argumentar só o que fazemos aqui e agora, simplesmente não há outro ponto de partida disponível, pois seja o que for que possamos escolher como tal, não podemos deixar de falar e argumentar sobre isso. Nós não podemos negar que a argumentação deve ser o ponto de partida, e o ponto de partida de toda fala sobre o homem, sem cair em alguma forma (imediatamente a ser explicada) de contradição.
Partindo do a priori da argumentação como necessário e inegável – e, portanto verdadeiro a priori – ponto de partida, então, é meu plano explicar tudo que já está “implicado” nesse a priori e portanto do mesmo modo considerado como verdadeiro a priori.Isto é, o seguinte argumento mira estabelecer e elucidar o que deve ser pressuposto pela argumentação, i.e, o que um argumentador deve aceitar como mais básico e elementar que a argumentação, como uma fundamentação pré-argumentativa da argumentação, se você permitir, e que faz a argumentação possível.
Quatro insights imediatos vêm à mente: (1) Argumentação (argumentation) pressupõe ação. A ação vem antes da argumentação. Toda argumentação (arguing) é ação e todo argumentador sabe o que é agir. Mas só poucas ações são argumentação. (2) Até mesmo a maioria de nossos atos de fala (speech acts) – atos acompanhados por palavras – não são argumentação. O emprego da linguagem para outros propósitos não-argumentativos também vem antes e é pressuposta pela argumentação. (3) Na verdade, na maioria das vezes não falamos nada quando agimos. Agimos silenciosamente, e a ação silenciosa também vem antes e é pressuposta pela argumentação. (4) O discurso argumentativo é raro e tem o propósito e objetivo único de resolver desacordos a respeito da verdade de certas proposições ou a validade de certos argumentos.
Primeiro: Já que muitos aqui estão familiarizados com o trabalho de Mises, posso ser breve a respeito do primeiro ponto. Argumentar é um caso especial de agir. Tudo que pode ser declarado sobre ações em geral aplica-se também ao caso especial da argumentação. Como toda ação, a argumentação toma lugar no tempo e espaço e é restringida pela escassez e tempo. A argumentação, também, é uma atividade propositada, motivada.
Mas: Nem toda ação é argumentação. A argumentação é uma atividade sui generis.
Segundo: Enquanto argumentar é também uma forma de ação (interação) comunicativa – usando linguagem – voltada para o sucesso da coordenação das ações de uma comunidade de falantes, a maioria das ações comunicativas é não-argumentativa, i.e, é fala que não está preocupada com o esclarecimento da reivindicação de verdade. Na verdade, até mesmo, a solicitação ou a sugestão de entrar em uma argumentação não é aparentemente em si uma proposição ou argumento certo ou errado, mas uma solicitação ou sugestão. O que demonstra que a comunicação não-argumentativa vem e deve ter sido aprendida temporal e logicamente antes da argumentação. Mais fundamentalmente, antes de podermos nos envolver na argumentação, devemos já saber e ter aprendido (no mínimo) como usar palavras para chamar alguém e como pontuar, chamar a atenção ou referir a alguma coisa para ser feita ou esperada. Deve ser sem sentido negar isso, porque o proponente desse argumento deve já pressupor essas habilidades como um “dado” a priori, ambos, para ele-mesmo bem como para seu oponente. O a priori da argumentação, então, implica como sua pressuposição e fundamentação – praxeológica – lógica e prática, um a priori do agir comunicativo.
Considerando analiticamente, algum tipo de ato de fala ou agir comunicativo humano, podemos distinguir duas partes distintas ou constituintes. De um lado, toda fala tem uma parte proposicional. Aí algo é declarado a respeito de certos fatos (que é o que nós estamos falando sobre). De outro lado, toda fala tem uma parte ilocucionária ou performativa, por meio do qual o falante coloca a parte proposicional de sua fala dentro de um contexto social ou interativo, comentando, por assim dizer, a outros falantes o que fazer com isso. O mesmo conteúdo proposicional: por exemplo, “essa banana”, pode ser apresentada em vários modos performativos tal como “isso é uma banana?” “Eu te prometo esta banana”, “essa é minha banana”, “tome essa banana”, “eu estou dizendo a você uma história sobre uma banana”, “Eu estou mandando você se livrar dessa banana”, etc. Falar, então, é mais do que uma mera declaração de fatos (fatos sendo o que proposições tratam). Isso envolve sempre e invariavelmente que um dado conteúdo proposicional é proferido e colocado em algum modo performativo específico.
De acordo, o sucesso (ou fracasso) de um agir comunicativo voltado para a coordenação depende de uma dupla realização. O entendimento do conteúdo proposicional da fala e a aprovação do modo de propô-lo.
A coordenação é bem-sucedida se Eu te pedir para me trazer uma banana e você me trazer uma. É mal-sucedida se você não souber o significado de “banana” ou “trazer” – e você me traz um ursinho de pelúcia ou responde ao meu pedido dizendo, por exemplo, “eu tenho 60 anos” (indicando que você não entendeu o propósito inteiro da minha fala). Igualmente, a coordenação é mal-sucedida se você entender o que eu disse, mas rejeitar minha proposta e responder, por exemplo, “eu não recebo ordens suas”, ou “não tenho tempo”, ou simplesmente se afastar de mim.
Além disso e mais importante, a coordenação mal-sucedida (descoordenação) pode assumir duas formas ou resultados possíveis: uma “simples” decepção ou um conflito “sério”. Depois que você (decepcionantemente) desistiu de meu pedido (e meu ato de fala fracassou), nós dois continuamos nossos afazeres diários como antes (silenciosamente), eu com meus meios sobre meu controle e você com os meios sobre seu controle. Um caso de decepção.
Um conflito resulta, se, em vez de você me trazer uma banana (comunicação bem-sucedida) ou se afastar de mim (comunicação decepcionante), você responde, por exemplo, tirando da mão um canivete contra meus protestos ou puxando meu cabelo. Também, conflitos resultam se eu responder à sua recusa decepcionante por segui-lo contra seu protesto em sua casa (a casa anteriormente sob seu controle indiscutível). Em ambos os casos, nós conflitamos, porque queremos empregar os mesmos meios escassos – a faca, o cabelo, a casa – para propósitos incompatíveis. Por causa da escassez de meios físicos, apenas um propósito pode ser realizado e cumprido. Precisamos conflitar.
Deixe-me fazer uma pausa aqui por um momento, para umas poucas observações empíricas criticamente importantes. As conquistas das ciências sociais são frequentemente menosprezadas ou até mesmo ridicularizadas. E na visão de muitos, senão da maior parte da sociologia acadêmica contemporânea, essa avaliação é certamente bem merecida. Ainda assim, isso não deve nos cegar para perceber alguns fatos bastante óbvios.
Certamente deve ser reconfortante e animador observar como tantas, senão a maioria do nosso agir comunicativo – nossos atos de fala – é bem-sucedido, tanto em ser compreendido quanto em ser aceito pelo que é. Muito mais comunicações são bem-sucedidas do que não. E se a comunicação não é bem-sucedida e fracassa em alcançar seu fim de coordenação interpessoal, esses fracassos são, na maioria das vezes, mera decepção. A comunicação fracassada na forma de conflito é uma ocorrência comparativamente rara (e sua notoriedade é derivada de sua raridade). Em geral, somos surpreendentemente bem-sucedidos, como falantes, em trazer coordenação.
E se falar é e serve para nós no mundo social (constituído de outras pessoas e suas ações), o que a engenharia é e faz por nós no mundo natural (constituído de pedras, plantas e animais e seu comportamento), então nós devemos efetivamente vir para a conclusão que somos bastante bem-sucedidos como engenheiros sociais, como pessoas efetuando a coordenação por meio da fala.
Além disso, até mesmo se o agir comunicativo algumas vezes fracassa em atingir a coordenação, temos um método de aprender e melhorar.
Eu voltarei ao assunto da argumentação. Mas antes, alguma atenção deve ser dada para a ação silenciosa ou não-falada e o propósito categoricamente distinto do agir comunicativo vs. agir instrumental.
A maior parte do que fazemos são ações silenciosas ou não-faladas. Na verdade, assim como o agir comunicativo vem antes da e é pressuposto pela argumentação, também a ação silenciosa vem antes do e é pressuposta pelo agir comunicativo. De um lado, isso é revelado pelo fato de que, quando crianças, aprendemos a agir antes de aprendermos a falar e usar palavras para identificar e descrever nossas ações como ações. E, do outro lado, é revelado pelo fato de que, por mais importante que seja, o agir comunicativo pode, de outra forma, estar na vida humana, o homem agente não pode viver e sustentar a sua vida apenas com palavras. Ele deve primeiro transformar a natureza para produzir bens materiais para o propósito último do consumo, a fim de encontrar tempo para prestar-se a comunicação ou argumentação.
Se vestir, cozinhar, comer, andar, observar, plantar, colher, construir, mensurar, contar, cortar, limpar, consertar, dirigir, beber, etc., todos são exemplos de ações silenciosas. Em todas essas atividades nós seguimos fórmulas (recipes) práticas ordenadas metodicamente de como usar meios físicos escassos a fim de alcançar um objetivo antecipado (estar vestido, ter cozinhado, comido, etc.). Se perguntado, e na reflexão, podemos dar uma descrição de nossas ações em termos de palavras e sentenças significativas: sobre seus propósitos, sobre os meios usados e sobre a fórmula seguida e aplicada no uso de tais meios. E outros falantes podem entender essa descrição, porque todos nós estamos unidos por uma linguagem comum aprendida através da prática comum em jogos de linguagem. Mas ficamos em silêncio, porque julgamos o sucesso (ou o fracasso) de nossa ação como independente de qualquer esforço comunicativo (caso contrário, a comunicação teria que ser parte da fórmula que leva ao sucesso). Ficamos em silêncio, porque julgamos o sucesso de nossas ações como dependente apenas de nós, como se fôssemos a única pessoa na terra, como se ficássemos em uma relação puramente monológica com o mundo e fôssemos o único juiz do sucesso e fracasso.
Como já notado, toda atividade não-falada ou instrumental envolve o uso de meios físicos escassos ao alcance e sob controle de um dado ator, com o propósito de transformar ou reorganizar o mundo físico-material em torno dele em outro arranjo futuro antecipado, mais altamente valorizado ou a configuração de seus arredores materiais. Nisso, ele está sempre guiado por algumas ideias ou conhecimentos na forma de fórmulas de ação. Se ele alcança seu objetivo, suas fórmulas são consideradas corretas e o conhecimento contido neles pode ser considerado verdadeiro. Se ele fracassa em alcançar seu objetivo, as fórmulas são incorretas e seu conhecimento é considerado falso ou insuficiente.
Interessantemente, no despertar dos escritos de tais proeminentes figuras intelectuais como Willard V. O. Quine, Thomas Kuhn e Paul Feyerabend, o relativismo e o ceticismo característico de grande parte da filosofia das ciências sociais tomaram, também, cada vez mais o controle na filosofia das ciências naturais. Até mesmo nas ciências naturais, esses autores reivindicam de várias maneiras que não existe uma base sólida e nenhum progresso sistemático e metódico e, portanto, a possibilidade de algum “crescimento do conhecimento” deve ser colocada em dúvida fundamental. Em vez disso, eles falam muito sobre a “indeterminação da tradução”, “relatividade ontológica”, a “incomensurabilidade de paradigmas” e o “anarquismo metodológico”.
Na luz do que tem já sido notado sobre a função do conhecimento como um instrumento mental na busca pelo agir instrumental bem-sucedido e a transformação intencional da natureza na cultura, essas visões relativistas, por mais populares ou elegantes que sejam atualmente, devem ser consideradas fundamentalmente equivocadas. De fato, como vou demonstrar posteriormente, elas devem parecer nada menos que absurdos.
Por um lado, parece ser óbvio que a maioria – e cada vez mais – do mundo em nossa volta não é “natureza pura” ou o “meio” dado pela natureza, mas feita, ao invés disso, de bens fabricados (ou meios). Estamos cercados por casas e ruas, fazendas, fábricas, mesas, cadeiras, torradeiras, telefones, canos, fios, carros, barcos, guardanapos, papel higiênico e assim por diante. Quase nunca, em nossas vidas diárias, encontramos a “natureza pura”. O que encontramos quase exclusivamente em vez disso é um mundo de cultura feito pelo homem: de objetos “artificiais”, designados para um propósito definido.
Importante (mas regularmente esquecido pelos filósofos relativistas das ciências naturais), também o cientista natural em particular não aborda a natureza com suas próprias mãos, mas com a ajuda de bens fabricados propositadamente. Para fazer sua observação da natureza, ele emprega superfícies, planos, réguas, linhas, pontos, ângulos, círculos, curvas, relógios, escalas, calculadores, microscópios, telescópios, queimadores, isqueiros, termômetros, máquinas de raio X, etc., etc. Sem esses instrumentos, não haveria observações, e sem o funcionamento adequado desses instrumentos suas observações não seriam observações “científicas”. Também, sempre que o cientista natural conduz um experimento, ele deve, de modo a isolar o efeito de alguma variável sobre outra, mantendo outras variáveis constantes. Isto é, ele deve planejar e organizar artificialmente a natureza, para só então gerar seu dado (data) e, de novo, esses dados são dados “científicos” apenas se o experimento foi designado e conduzido corretamente. De fato, até mesmo observações “simples” ou “puras”, tal como uma descrição do observador, por exemplo, requer que o observador seja propriamente colocado ou situado vis-à-vis o objeto observado e, portanto, suas observações também são “artificiais”, dados gerados propositadamente.
Ademais, empiricamente igualmente óbvio, a maioria das nossas ações envolvem meios fabricados e a maioria dos dados fabricados pelos cientistas naturais estão funcionando e são válidos.
A maioria dos produtos usados em nosso dia-a-dia funciona como deve ser. A casa dá abrigo, a torradeira torra, o telefone toca e transmite sons distantes, o carro dirige sobre a estrada feita para dirigir, a cadeira nos permite sentar, a mesa fica parada e fornece uma superfície, o fio serve como uma cerca ou transmite eletricidade, o cano retêm o ar, a água, óleo ou gás, etc., etc. As fórmulas conduzindo a esses produtos, então, devem obviamente ser fórmulas corretas. O que essas fórmulas nos dizem deve ser o verdadeiro conhecimento da natureza e sua forma, porque nos leva ao sucesso instrumental. E julgando pelo grande e crescente número e variedade de diferentes objetos fabricados artificialmente ao nosso redor, devemos obviamente ter descoberto cada vez mais fórmulas corretas e acumulado cada vez mais conhecimento verdadeiro da natureza. (Tanto para qualquer ceticismo a respeito da possibilidade de um “crescimento do conhecimento”).
É claro, também é verdadeiro que nós, algumas vezes, fracassamos em nossas ações instrumentais. A casa, o chão ou a mesa desmoronam, o telefone permanece silencioso, o fio quebra ou o cano apresenta vazamentos. Fracassamos em alcançar nossos propósitos. Entretanto, até mesmo nos casos relativamente raros de quando nossas ações instrumentais fracassam e não alcançamos nosso objetivo, nós não apenas imediatamente reconhecemos que fracassamos. Também atribuímos esse fracasso a nós e a uma fórmula falha ou a uma fórmula aplicada incorretamente, i.e, a nosso conhecimento deficiente ou sua aplicação incorreta. Não culpamos a natureza. A natureza, como foi já enfatizado repetidamente, é da maneira que é. O que distingue uma casa de trabalho, cadeira, mesa, torradeira, carro, barco ou o que quer que esteja quebrado, não é a natureza e as leis da natureza – elas são verdadeiras e se aplicam a implementos funcionando e interrompidas igualmente – mas a presença de um propósito humano, i.e, do fato de que apenas uma casa, cadeira ou mesa em pé, uma torradeira que torra, e uma bóia que flutua, são considerados um sucesso por nós (ao passo que uma bóia furada é considerada um fracasso). Tanto o sucesso quanto o fracasso são devidos a nós, e a nossa construção de fórmulas corretas ou incorretas.
Tudo isso também se aplica ao cientista natural. Seus instrumentos: suas superfícies fabricadas, réguas, círculos, relógios, escalas, calculadoras, termômetros, lentes, etc., etc., também, geralmente trabalham e funcionam da maneira que deveriam. A régua mede, o círculo circula, os relógios medem as horas e as calculadoras calculam. Do mesmo modo, o projeto e a construção de “experimentos controlados” do cientista natural é rotineiramente bem-sucedido. A fórmula de construção para estes instrumentos e arranjos artificiais, então, deve ser correta e o conhecimento incorporado neles deve ser verdadeiro.
Também é possível, é claro, mesmo que relativamente raro, que os instrumentos do cientista natural fracassem para fazer o que eles estão destinados a fazer. A régua, o círculo, o relógio, a calculadora, o termômetro estão quebrados, ou, um experimento saiu do controle. No entanto, neste caso, o cientista natural também não deve apenas descobrir rapidamente que falhou. Ele também sabe que o fracasso está com ele e sua fórmula de construção fracassada ou incorreta para sua régua, círculo ou calculadora, e não com a natureza e suas leis. A régua quebrada, o círculo ou a calculadora são parte da natureza e se comportam de acordo com as leis naturais, assim como um funcionamento adequado da régua, do círculo ou calculadora. É apenas o cientista natural, dependendo do propósito de sua pesquisa, que faz a distinção entre equipamentos que funcionam de modo “defeituoso” e “adequado”. A régua não “sabe” como é, como medir, e a calculadora não “sabe” como calcular, i.e, distinguir as medidas e cálculos corretos do incorretos, como a existência de réguas e calculadoras quebradas demonstra conclusivamente. É o cientista que sabe como medir e calcular corretamente e desse modo também distinguir entre réguas e calculadoras funcionando e defeituosas. Similarmente, é apenas o cientista, não o “experimento” em si-mesmo que determina algo sendo um experimento bem-sucedido – replicável – ou não.
Além disso, sempre que os instrumentos dos cientistas naturais – sua régua, círculo ou calculadora – fracassam ou seu experimento dá errado, ele, em particular, também sabe onde está o fracasso e o que precisa ser aperfeiçoado ou reparado na construção das fórmulas de suas ferramentas ou de seu projeto experimental.
A verdade e a busca da verdade, então, são nosso método e meio para a realização de nossos fins, i.e, do sucesso. Nós não buscamos a verdade-em-si (an-sich), buscamos a verdade, porque leva para e é um requisito do sucesso. Quanto mais fórmulas verdadeiras conhecermos, mais ações podemos performar com sucesso.
Quarto: Mas – e isso me traz de volta a meu ponto final: à argumentação como uma ação sui generis – apesar das fórmulas que seguimos em nossas ações silenciosas podem ser certas ou erradas, nós raramente ou nunca argumentamos se elas são um ou o outro. Se elas estão certas, elas levarão ao sucesso, e se elas estão erradas, elas levarão ao fracasso. A decisão é sempre fácil. A prova está no uso prático. Julgamentos públicos longos à la Galilei não são necessários para decidir no campo da indústria e da engenharia. Não precisamos de um debate público sobre que fórmula seguir na construção de uma superfície plana, uma régua, um triângulo, um círculo, um relógio, um tijolo, uma parede, uma casa, etc. Todos podem tentar e ver as consequências por si mesmos. E por causa dessa intimidade entre verdade e sucesso, fórmulas aperfeiçoadas e novas, uma vez que se tornam conhecidas, são rapidamente, sem muita ou mesmo nenhuma discussão, sem atrito se você decidir, adotado por outros agentes em seu próprio interesse no sucesso.
Uma necessidade de qualquer discussão longa a respeito da alegações de verdade (truth-claims) de várias fórmulas, i.e, para a argumentação, tipicamente só surge em conexão com o conflito. Isto é, a primeira vez que nós discutimos e debatemos a sério questões de verdade, se ou não algo é “realmente” verdadeiro, é em discussões concernente a questões de justiça, de certo e errado.
Você e eu queremos usar um e o mesmo bem, para propósitos incompatíveis. A comunicação simples fracassou para alcançar a coordenação. Nós conflitamos. Mas podemos ainda argumentar. E em qualquer caso, é impossível argumentar consistentemente (sem cair em contradições) que nós não podemos fazer qualquer coisa sobre nossas aparentes des-coordenações, exceto lutar. Podemos fazer outra coisa, como este mesmo argumento,o qual, ao reivindicar-se como sendo verdadeiro, demonstrando de maneira manifesta e conclusiva.
Podemos descrever as ações que levaram ao nosso conflito verbalmente, e podemos identificar duas alegações de verdade incompatíveis como a origem de nosso conflito: “Você é o proprietário propriamente dito [proper] do bem em questão” (a faca, o cabelo, a casa ou o que quer que seja – e, portanto, seu plano chega à execução – versus “Eu sou o proprietário propriamente dito” – e, portanto, meu plano é implementado. Por meio de palavras, então, podemos instituir um “julgamento”, conduzido em uma linguagem pública, no qual apresentamos a nossos rivais alegações de verdade com o propósito de encontrar uma resposta definitiva de “sim” ou “não”, “verdadeiro” ou “falso”, “certo” ou “errado” – a verdadeira fórmula – que vai restaurar a coordenação e prevenir conflitos futuros.
E nós descobrimos tal resposta – que explica porque conflitos são relativamente raros em nossas vidas e a esmagadora maioria de nossas ações, sejam comunicativas ou silenciosas, caminha pacificamente, mesmo que às vezes seja decepcionante.
A fórmula diz respeito à donidade* [ownership] (controle exclusivo) – “certo”, “verdadeiro” ou “correto” – “propriamente dita” de meios físicos escassos. Ela prescreve que a donidade “propriamente dita” de meios, ou “propriedade”, deve ser estabelecida somente através do primeira – isto é, sem oposição ou livre de conflito – apropriação e subsequente transformação de tais meios, ou senão através de um acordo mútuo sobre – e, portanto, igualmente sem oposição – a transferência de propriedade de um agente para outro. Constantemente, em todas as ações empregamos apenas tais meios que você primeiro apropriou e produziu sem oposição ou que você recebeu em um acordo mútuo em troca de outros que tinham posse sem oposição (propriedade) do bem em questão antes de você! Se você seguir essa fórmula, o mundo ainda estará cheio de surpresas e decepções, mas todo conflito pode ser evitado, desde o início da humanidade até o seu fim.
Que, em verdade, conhecemos a fórmula correta de prevenção de conflitos revela-se no fato de que em nossas vidas diárias, nós rotineiramente nos abstemos de interferir com o uso de meios que já estão sob o controle perceptível ou notável de outra pessoa e restringimos nossas ações exclusivamente aos meios sobre os quais já temos controle.
Entretanto, esse conhecimento é, em grande parte, habituado e subconsciente. É apenas sob a reflexão – ao falar sobre ações e tipicamente motivado por algum evento raro de conflito – que não podemos apenas verbalizar e formular essa regra, mas o que nós podemos reconhecer, mas que podemos reconhecer ainda mais, por via de um argumento transcendental, que essa mesma regra já é “implicada” em, ou, mais corretamente, pressuposta pela argumentação. Isto é, que seguir esta regra é o que faz a argumentação como uma ação sui generis na medida do possível; e, portanto, que sua verdade e validade como uma fórmula de “engenharia” da coordenação social não pode ser argumentativamente negada sem cair em uma contradição performativa.
A argumentação é uma atividade propositada. Não são sons sem rumo e flutuando livremente. São atos de fala (speech acts) que visam a coordenação. Mais especificamente, são atos de fala que visam a coordenação por meios de nada além de argumentos. Mas como uma ação, a argumentação também envolve o emprego (employment) de meios físicos escassos. O primeiro e mais importante entre esses meios é o nosso corpo físico. Ambos, o proponente e o oponente de um argumento devem fazer o uso de seus corpos para gerar seus argumentos e se envolverem em uma argumentação. Eu devo usar meu corpo, e você o seu. E minha donidade “propriamente dita” do meu corpo, e o seu do seu, não pode ser argumentativamente disputada sem cair em contradições. Para argumentar de um lado para o outro e imputar os argumentos para você ou para mim, como meus argumentos ou os seus, você e eu devemos reconhecer a donidade “propriamente dita” um do outro de nossos corpos físicos distintos e separados.
Além disso, nossos dois corpos já estão ‘naturalmente’ apropriados, em que só eu posso controlar meu corpo diretamente, à vontade, e que apenas você pode controlar seu corpo diretamente. Mutatis Mutandis, eu posso controlar seu corpo, e você pode controlar o meu, apenas indiretamente, usando primeiro nossos corpos diretamente controlados. Isso demonstra a prioridade prática e lógica – ou praxeológica – da apropriação direta antes e acima da indireta. Reivindicar em um argumento, então, que Eu sou o proprietário propriamente dito do seu corpo (ou você do meu) envolve uma contradição performativa. Porque eu devo pressupor que sou o proprietário propriamente dito do meu próprio corpo (com o qual produzo meus argumentos), e você é o proprietário propriamente dito do seu corpo (com o qual produz seus argumentos). Atribuir um argumento a mim (ou a você), os meios empregados para produzi-lo devem ser meus (ou seus) também.
Ademais, para além da donidade propriamente dita de cada pessoa do seu corpo físico naturalmente apropriado, é pressuposto pela argumentação. Nós já agimos, silenciosa e comunicativamente, muito antes de nos envolvermos em uma argumentação. Antes de qualquer duelo argumentativo, você e eu, com a ajuda de nossos respectivos corpos – e sem oposição de qualquer um dos dois – já produzimos, trocamos, consumimos, acumulamos ou nos apropriamos de inúmeros bens. Não podemos estar engajados em uma argumentação agora, sem tais atividades prévias e posses prévias. Elas fazem nossa presente argumentação como um todo possível. Por conseguinte, devemos (must) admitir (e não podemos negar sem contradição “performativa”) que a posse prévia e, em última análise, a primeira posse é a via “propriamente dita” para a donidade de meios físicos escassos. Ao apresentarmos os nossos argumentos aqui e ali, você e eu afirmamos que não somos apenas os proprietários propriamente ditos de nossas propriedades “naturais” e corpos físicos diretamente controlados com os quais produzimos esses argumentos, mas também de todas as coisas que você e eu temos previamente, anterior ao nosso argumento, e sem oposição de qualquer um dos dois, feito ou produzido propositadamente. Em verdade, para argumentar consistentemente do contrário – que a propriedade seja estabelecida e determinada por disputa posterior e, em última instância, a última possuída – é literalmente impossível. Não teríamos pés ou solos sobre os quais nos apoiamos e fazemos nossos argumentos. Nem você, nem eu, poderíamos ter agido silenciosamente e por conta própria, ou separadamente um do outro, lado a lado, algumas vezes podendo ser decepcionados, mas em qualquer caso sem conflito.
A análise filosófica, então, confirma e reforça nossa intuição. Temos, em verdade, uma fórmula perfeita e infalível de como evitar conflitos e, desse modo, aperfeiçoando sistematicamente a coordenação, e temos uma fórmula perfeita para resolver todos os conflitos, caso ainda ocorram. E com essa fórmula termos, também, um critério de justiça verdadeiro e infalível, i.e, de decidir entre a reivindicação de donidade justa (ou verdadeira) vs. o injusta (ou falsa) e determinar como restaurar a justiça, se a injustiça ocorreu. Nem tudo está aberto à disputa em uma argumentação sobre reivindicações conflitantes de donidade. A validade do princípio de prioridade da aquisição justa em si mesma não pode ser argumentativamente disputada, pois sem ela qualquer qualquer argumentação entre você e eu seria impossível. Em disputa, então, só pode ser a aplicação deste princípio em casos particulares e com respeito a meios específicos. Pode haver disputa sobre se, ou não, você ou eu aplicamos incorretamente o princípio em alguns casos e com respeito a meios particulares. Podemos discordar quanto aos fatos “verdadeiros” de um caso: quem estava onde e quando e quem tem posse disto ou daquilo em tais e tais horas e lugares? E às vezes pode ser entediante e demorado estabelecer e escolher esses fatos.
Contudo, assim como o princípio é indiscutível, o mesmo ocorre com o procedimento,a fórmula de classificar os fatos relevantes e chegar a uma conclusão. O procedimento é ordenado logicamente pelo princípio: Em todo caso de conflito trazido a um julgamento público de argumentos, a presunção é invariavelmente em favor do proprietário atual e , mutatis mutandis, o fardo de uma “prova do contrário” é sempre do oponente de algum estado de coisas atual e de posses atuais. O oponente deve demonstrar que ele, ao contrário da aparência atual, tem uma reivindicação de posse sobre algum bem específico que é mais antigo e datado antes da reivindicação do proprietário atual, e,portanto, que ele foi destituído pelo atual proprietário. Se, e apenas se o oponente pode demonstrar isso com sucesso além de qualquer dúvida aceitável em um julgamento público de argumentos, a posse questionável deve ser restaurada como propriedade a ele. De outro lado, se o oponente não apresentar seu caso, então não apenas a posse permanece como propriedade com seu proprietário atual, mas o proprietário atual, por sua vez, adquiriu uma reivindicação de posse contra seu oponente. Pois o corpo do atual proprietário e o tempo foi empregado incorretamente pelo seu oponente durante seu argumento fracassado e rejeitado. Ele poderia ter feito outra coisa mais preferível com seu tempo e corpo, que não fosse defender argumentativamente a si-mesmo contra seu oponente.
Deixe-me formular uma breve conclusão agora: O que tenho tentado fazer aqui é refutar o naturalista (ou behaviorista), que quer explicar o Homem – a natureza do homem – totalmente e exclusivamente em termos das ciências naturais e, mais especificamente e mais importante, o cético, que reivindica que não há tal coisa como uma constante e imutável natureza humana e leis do homem imutáveis (da essência do homem). Que reivindica, ao invés disso, que tudo que existe para se dizer sobre o homem é a história (story) e o estudo da história (history), i.e, de ações passadas; que o melhor que podemos alcançar e o conhecimento de regularidades passadas, e com base nisso, de conjecturas experimentais acerca de eventos futuros; e que o máximo que podemos alcançar verdades – ainda não falsificado – hipotéticas, mas que não existe tal coisa nos assuntos humanos como verdades apodíticas ou a priori; e em qualquer caso, que não há tal coisa como princípios de justiça universais e imutáveis, i.e, de certo e errado.
Em vez disso, argumentei que conhecemos – e que não podemos, sem contradição performativa, negar conhecer – algumas verdades a priori sobre o homem. Uma vez explicados, eles parecem quase auto-evidentes e triviais, mas seu reconhecimento tem consequências filosóficas importantes. Não podemos negar que podemos argumentar um com o outro em uma linguagem pública e comum. Que podemos nos comunicar um com o outro. Que podemos coordenar nossas ações por meio de palavras, e podemos vir-a-ser “melhores”, i.e, mais bem-sucedidos em nossas tentativas de coordenação comunicativa em aprender como falar melhor, i.e, como usar nossas palavras mais corretamente e claramente.
Com isso, podemos descartar imediatamente todas as falas sobre o “solipsismo”, “outros egos” ou ao “ultra-subjetivismo” e todas a ruminações Hobbesianas de uma guerra de todos contra todos como uma ginástica mental inútil e pseudo-problemas – porque seja quem for que escreve sobre essas questões refuta a si-mesmo por virtude do fato de que ele escreve e argumenta seu caso em uma linguagem pública e, desse modo, mostra a si-mesmo uma pessoa cultural ou socializada (nem um solipsista nem um lobo).
Além disso, não podemos negar que agimos em silêncio, sozinhos e sem qualquer propósito argumentativo (pois temos agido sozinhos antes de começarmos a falar um com o outro, e podemos parar de falar novamente). Que ao fazer isso, empregamos diretamente e indiretamente bens apropriados com o propósito de produzir algum objetivo mais valioso ou um bem. Que seguimos fórmulas (regras de como fazer) na perseguição desse bem, seja ele qual for. Que essas fórmulas podem levar ao sucesso ou fracasso, e, portanto, dado seu propósito, são fórmulas objetivamente verdadeiras ou falsas. E que podemos aprender com nosso sucesso ou fracasso e metodicamente aprimorar nossas fórmulas por meios de experimentação sucessiva, i.e, experimentando-os.
Isso refuta toda fala elegante sobre o “anarquismo metodológico”, da “intraduzibilidade de linguagens”, da “incomensurabilidade de paradigmas”, e da impossibilidade de um crescimento sistemático do conhecimento.
Finalmente, não podemos negar que conhecemos a fórmula verdadeira de como evitar conflitos, e como resolvê-los, caso ainda ocorram. Que podemos distinguir entre posses anteriores sem oposição como posses argumentativamente justificáveis (como propriedade) versus posses opostas como expropriações argumentativamente injustificáveis (como roubo). E que conhecemos como restaurar a justiça se a injustiça ocorreu.
E isso refuta toda fala sobre relativismo ético ou cultural, do positivismo jurídico, de poder, etc.
Nota
[*] Aqui optou-se – para evitar ambiguidade – traduzir “ownership” por “donidade” ao invés de “proprietário”.